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Uma reflexão sobre a proposta de divisão político-administrativa do Estado angolano

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“O melhor governo é aquele em que há o menor número de homens inúteis.”

Voltaire

 

 

A denominada divisão político-administrativa consiste na repartição territorial de um Estado mediante a especificação dos seus limites geográficos internos para fins administrativos e, consequentemente, eleitorais. A divisão político-administrativa da República de Angola é regida pela Lei n.º 18/16, de 17 de Agosto (Lei da Divisão Político-Administrativa), que revogou a Portaria n.º 18.137-A, de 13 de Dezembro de 1971 (Divisão Administrativa de Angola), estatuindo em seu artigo 1.º que o território angolano é constituído por 18 Províncias, 164 municípios, 518 Comunas e 44 Distritos Urbanos.

Entrementes, o Presidente da República, por meio do Despacho Presidencial n.º 104/21, de 8 de Julho, criou a Comissão Multissectorial para alterar a divisão político-administrativa do país, visando as províncias do Cuando Cubango, Lunda-Norte, Malanje, Moxico e Uíge. O Despacho supracitado foi exarado com a seguinte finalidade e fundamentação: “a divisão político-administrativa é um elemento essencial ao exercício da acção governativa, à promoção do desenvolvimento económico e social e ao desenvolvimento harmonioso do território nacional; Tendo em conta que em alguns aspectos a actual divisão político-administrativa se afigura desajustada e pouco adequada para uma gestão eficiente do território e a satisfação das necessidades colectivas; Convindo ajustar a divisão político-administrativa com vista a uma maior aproximação das entidades administrativas dos cidadãos e uma gestão mais justa e equilibrada do território nacional.

A fundamentação da proposta de divisão político-administrativa do Estado angolano, segundo a qual a referida divisão permitiria a promoção do desenvolvimento económico, social e harmonioso do território nacional, possibilitando uma gestão eficiente do território e a satisfação das necessidades colectivas revela-se um jocoso exercício de retórica flagrantemente alienada da realidade angolana. Se considerarmos, por exemplo, as províncias de Cabinda com extensão territorial de 7.270 km² e 870.757 habitantes; Cuanza Norte com extensão territorial de 24.110 km² e 539.486 habitantes; Bengo com extensão territorial de 33.016 km² e 479.936 habitantes (INE, 2021), que a despeito da reduzida extensão territorial e da baixa densidade populacional, não se verifica o alegado desenvolvimento económico e social, antes porém, a situação socioeconômica destas províncias, como no restante do país, em pouco difere da qualidade de vida característica do período medieval (séc. V-séc. XV), em que os “súditos” se encontravam submersos em uma vergonhosa e inaceitável pobreza e abandono. No caso angolano, os dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE, 2020), revelam que a pobreza “a nível nacional é estimada em 54,0%, ou seja, mais de 5 em cada 10 pessoas em Angola são multidimensionalmente pobres.”

Por semelhante modo, a argumentação segundo a qual a divisão político-administrativa permitirá uma maior aproximação das entidades administrativas dos cidadãos e uma gestão mais justa e equilibrada do território nacional, revela-se igualmente falaciosa, conforme foi demonstrado acima. Porquanto, no caso angolano, o problema não reside na extensão territorial das províncias e sua densidade populacional, mas sim na gestão danosa dos bens públicos e na incapacidade governativa da maioria dos governadores e administradores, que agem quase exclusivamente a serviço dos seus próprios interesses e dos interesses económicos e ideológicos do partido governista, em detrimento dos seus administrados. Nestas condições, realizar a divisão político-administrativa seria tão-somente aumentar a quantidade de “homens e mulheres inúteis na gestão da coisa pública” e o peso da obesa e ineficiente administração pública angolana.

Por outro lado, a aludida aproximação deveria ser assegurada mediante o direito de livre escolha dos gestores públicos pelos cidadãos, bem como o direito de livre participação na gestão da coisa pública, por meio da temida implementação das autarquias locais, uma vez que haveria espaço para responsabilizar os maus gestores e premiar os bons gestores pelo voto, em eleições livres, justas, transparentes e periódicas. A proposta de divisão político-administrativa para assegurar um número maior de governadores e administradores do partido governista, tal como a implementação do pérfido Plano Integrado de Intervenção nos Municípios (PIIM), para atribuir as vanglórias aos administradores do partido governista para que obtenham algum sucesso nas temidas eleições autárquicas, bem como outras manobras recreativas, como a revisão da Constituição, parecem visar escamotear a necessidade de implementação das eleições autárquicas, mas sobretudo fortalecer o inconteste poder do “suserano” sobre os seus “súditos”.

A descentralização, a desconcentração, a participação dos cidadãos e a aproximação dos serviços públicos às populações são princípios fundamentais consagrados no artigo 199.º da Magna Carta angolana. Tais princípios não devem servir de simulacro para inversamente concentrar e centralizar o poder, por meio de propostas legislativas que escamoteiam os laivos do autoritarismo subjacente. Pois, decidir de forma unilateral sobre a divisão político-administrativa sem um amplo e verdadeiro debate em nível nacional, sobretudo desconsiderando as efectivas prioridades do Estado, podem desvelar a indiferença em relação às necessidades vitais dos cidadãos, bem como o anseio inescusável de controlo absoluto do Estado.

A proposta de divisão político-administrativa produzirá uma recomposição da Assembleia Nacional, uma vez que em caso de divisão das províncias do Cuando Cubango, Lunda-Norte, Malanje, Moxico e Uíge, fazendo surgir 5 (cinco) novas províncias, implicará na eleição de 5 (cinco) novos Deputados por cada uma das novas províncias, totalizando 25 (vinte e cinco) novos Deputados ao Parlamento angolano, já que cada província constitui um círculo eleitoral, nos termos do artigo 144.º, n.º 2, alínea b, da Constituição angolana. Outrossim, a proposta de divisão político-administrativa gerará uma reconfiguração quantitativa de Governadores Provinciais, que passariam de 18 (dezoito) para 23 (vinte e três). A quantidade de Administradores poderá, igualmente, sofrer alteração dependendo da reconfiguração das novas prováveis províncias e municípios. Estes dados, portanto, revelam o crescimento da obesa máquina pública caracterizada pela sua ineficiência diante da incapacidade de satisfação das necessidades mínimas da maioria dos “súditos”.

Ainda em matéria eleitoral, a proposta de divisão político-administrativa demandará o aumento da quantidade total de assinaturas para a legalização de partidos políticos e para a apresentação de candidaturas às eleições gerais, nos termos do artigo 146.º da Constituição angolana. Para a obtenção das assinaturas exige-se um atestado de residência emitido pelas Administrações, que sob as hostes do partido governista tendem a dificultar a emissão do referido documento. Consequentemente, quanto mais províncias e Administrações, maior tende a ser a dificuldade de obtenção das assinaturas para os partidos políticos e coligações de partidos políticos serem legalizados e para apresentarem suas candidaturas às eleições gerais. Inversamente, possibilita a manutenção da forjada e amorfa maioria qualificada do partido governista na Assembleia Nacional. Importa ressaltar que a existência de diversidade partidária possibilita uma maior representatividade, em detrimento da vigência de um sistema de partido único envolto em um simulacro multipartidário.

Em suma, a democracia pressupõe o respeito ao pluralismo político-partidário; a participação dos cidadãos na construção de amplos consensos, resultantes das suas efectivas demandas; a existência de instituições republicanas e servidores públicos que gerem a coisa pública com transparência e eficiência em benefício da colectividade; a produção legislativa visando o bem comum e jamais para tão-somente assegurar o projecto de longevidade no poder. É, segundo alguns destes princípios, dentre outros, que a proposta de divisão político-administrativa deveria ser pensada.

 

Nelson Domingos, Constitucionalista e Docente Universitário

 

 

 

 

 

 

 

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