Isto É Notícia

EDITORIAL. Joel Leonardo pode tudo e falta a João Lourenço o sentimento de vergonha alheia

Partilhar conteúdo

O juiz-conselheiro presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, é hoje a expressão mais clarividente de que em jogos e nos interesses de grupos e políticos o que conta é o vale tudo e que nem sempre a força da razão se sobrepõe à razão da força bruta nos dias que correm e à arrogância com que se conduzem, por exemplo, os destinos da Corte Suprema em Angola.

A sensação de impotência e inoperância perante os vários descasos — e a isso acrescidas as suspeitas de práticas de vários ilícitos criminais associadas ao nome de Joel Leonardo, e a forma quase pueril e banal como as instituições de Justiça e do Estado continuam a lidar com as várias denúncias, envolvendo o seu nome — lembra um cenário de desespero, onde não se sabe se a melhor saída perante a fatalidade é a resignação ou o suicídio.

Mas, pior do que isso é a conclusão a que já muito boa gente chegou: Joel Leonardo pode tudo e ninguém está disposto a enfrentá-lo, nem mesmo o Presidente João Lourenço, que prefere o clássico e tradicional jogo da avestruz e solidariamente enterra a cabeça sem vergonha alheia, fingindo não ver tudo aquilo que já todos nós vimos e conhecemos.

Tudo isso lembra ainda — permitam-nos o paralelismo — a repetição de um guião governativo de péssimo gosto, cuja rodagem vimos assistindo há quase 50 anos, com a particular constatação de que não conseguimos acertar os tempos, nem tão-pouco sincronizar (isto é, combinar) as falas e as imagens em movimento que vemos rolarem numa tela de cinema que era suposto ser jogada para as calendas gregas. De erro em erro até à derrocada final?

Avisados sobre os erros que deviam ser evitados, a bem da nação, decidiu-se ainda assim revisitar o guião de um filme sobre as páginas dilacerantes de uma morte anunciada — a morte do Estado e da vergonha alheia. Só que se cometeu o grave equívoco de terem sido escolhidos péssimos actores, péssimos produtores, péssimos argumentistas, péssimos directores de fotografia — aliás, Londres/Buckingham é um bom exemplo disso —, ou seja, está tudo a coincidir para um mau presságio, que não pode ser naturalmente bom para ninguém, muito menos agradável aos nossos olhos.

No fundo, há um desnorte declarado, só que quem vai ao lado do timoneiro não tem o bom-senso e o bom gosto de alertá-lo sobre a forma pouco diligente e hábil como decidiu fazer-se mar adentro; sobre a forma muito desavisada como rasga as ondas e coloca-se — colocando-nos — em claro perigo, pois existem inúmeros alertas de existência de icebergs, sendo que o risco de uma colisão é mais do que evidente. Por outro lado, há também o risco de ocorrência de uma implosão (o submersível Titan é também um bom exemplo para isso), por mais que se diga que o casco da embarcação é resistente e recomenda-se.

Pondo agora de parte o paralelismo… Na verdade, a imagem putrefacta da justiça angolana hoje só não supera a podridão que se vive, por exemplo, num narco-Estado, porque existe ainda a ilusão de que órgãos como a Presidência da República, o Plenário de Juízes do Tribunal Supremo — enquanto órgão máximo daquela corte — e a Ordem dos Advogados de Angola (OAA) nos possam salvar da vergonha alheia que nos consome a todos enquanto parte activa e passiva de um país que vive sistematicamente de desacertos em desacertos.

Porém, o somatório de denúncias (graves) contra o juiz Joel Leonardo e o silêncio olímpico do Chefe de Estado, dá a sensação de que a vergonha alheia é algo com a qual nos devíamos sentir bem no desconforto de nossos lares, pois se ao mais alto magistrado do país não incomoda, não devia igualmente incomodar nenhum outro cidadão em Angola.

Apressado em reagir, publicamente, à situação que envolveu a ex-juíza-conselheira presidente do Tribunal de Contas Exalgina Gambôa, no caso de Joel Leonardo, o Presidente João Lourenço prefere repetir o inusitado e clássico gesto da avestruz: enterrar a cabeça na areia; fingir que não vê nada, esquecendo-se que, nas vestes de servidor público, que ele é, está obrigado a prestar esclarecimento sobre o modo como trata uma e outra coisa.

Mas, mais do que estar a enfiar no fundo da areia a cabeça sempre que ouve ou lê uma denúncia pública sobre o ‘caso Joel Leonardo’, João Lourenço fez também questão de não ler o que se dizia, por exemplo, com todas as letras na deliberação do Plenário do Tribunal de Contas sobre a situação de inelegibilidade do agora juiz-conselheiro do Tribunal Supremo Carlos Alberto Cavuquila, acusado e condenado por desvios de fundos públicos e com um outro processo em andamento, que provavelmente vá cair no esquecimento (por orientações superiores?).

Ou seja, para alguns casos, Angola tem um Presidente da República à altura(?) que, agindo como o grande guardião do Olimpo, vem a público de forma apressada (e quase sempre infeliz) contar, inclusivamente, detalhes sobre como a ex-presidente do Tribunal de Contas teria tentado extorquir dois ministros; curiosamente, um deles é suspeito em Portugal de lavagem de dinheiro e de outros crimes conexos.

Sobre a sua mesa de trabalho repousam tranquilas provas várias, produzidas por diligências feitas pela Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP) — órgão afecto à Procuradoria-Geral da República — mas, quando questionado na entrevista conjunta realizada pela Agência Lusa e do jornal Expresso, ambos de Portugal, o chefe de Estado é categórico:

“Não manter Joel Leonardo com base em que fundamento? O que se passa com Joel Leonardo é que um oficial que trabalhava no seu gabinete, esse sim, está verdadeiramente a contas com a justiça”.

O oficial/sobrinho de Joel Leonardo que está a contas com a justiça a ser patenteado no Tribunal Supremo

Ora, se o Chefe de Estado, enquanto mais alto magistrado do país, tem a informação de que o oficial/sobrinho do juiz Joel Leonardo é que está a contas com a justiça e não o presidente do Tribunal Supremo, então saberá também de várias outras ocorrências igualmente públicas e provadas (documentalmente), como:

Que enquanto chefe de Estado ele próprio João Lourenço aceitou — em sã consciência e sem uma arma apontada à sua cabeça — nomear e dar posse a um ex-agente público acusado e condenado (com sentença transitada em julgado) por desvios de fundos do Estado, estando mais um processo em andamento; que o juiz-presidente do Tribunal Supremo mandou pagar a taxa de condómino do apartamento do filho com dinheiros públicos (de todos nós); que o juiz-presidente do Supremo violou de forma abusiva a Constituição da República, desobedecendo uma decisão judicial, usando um despacho administrativo para inviabilizar a sua execução, impedindo assim que um juiz-conselheiro, Agostinho Santos, fosse reintegrado no Plenário;

Que o juiz-presidente do Tribunal Supremo pagou a si mesmo, durante um ano, milhões de kwanzas retirados da conta do Supremo domiciliada no Banco de Comércio e Indústria (BCI), além do que recebia e recebe como salário; que deixou de enviar para a Conta Única do Tesouro (CUT) milhões de kwanzas de dinheiros públicos; que o juiz-presidente do Supremo usou o mesmo oficial que está a contas com a justiça como ‘oficial de campo’ para negociar e pagar — com recurso do Estado e de forma ilegal — serviços prestados a um condomínio habitado pelo juiz-presidente da Câmara Criminal do Supremo e um juiz de direito;

Que o juiz-presidente do Tribunal Supremo está a ser acusado — de acordo com as diligências/investigações da PGR — de pelo menos oito crimes; entre os quais, peculato, corrupção, nepotismo; que o juiz-conselheiro presidente do Tribunal Supremo mandou instaurar um processo disciplinar contra uma juíza-conselheira, Anabela Vidinhas, relatora do mesmo processo em que é arguido o juiz Agostinho Santos, dando um claro sinal de que se trata de uma perseguição aos colegas;

Que o juiz-presidente do Supremo inseriu os filhos na folha de salário, com o agravante de ter atribuído uma categoria e um salário que não é compatível com o seu nível académico; que o juiz-presidente do Supremo atribuiu apartamentos a dois filhos seus, que eram em princípio destinados a juízes sem residências; que o juiz em causa mandou despronunciar o general Higino Carneiro, que estava e está acusado de vários crimes, e etc. A lista é longa…

Ora, estranhamente, mesmo depois de todas estas denúncias e evidências, não há qualquer sinal de vergonha alheia na atitude do mais alto magistrado do país. E quando falamos em vergonha alheia, olhamos para o mínimo que se devia sentir numa situação como esta que envolve o juiz-presidente do Tribunal Supremo. O que nos leva a concluir, tristemente, que, tal como acontece na indústria cinematográfica, o guião e o roteiro deste filme de péssimo gosto tem autoria e esta autoria só pode ser assada a quem assiste a tudo isso sem o mínimo de indignação e vergonha. (FIM)

*Com a publicação deste artigo de opinião, o portal de notícias !STO É NOTÍCIA dá assim início à publicação regular de editoriais todas as sextas-feiras. 

ISTO É NOTÍCIA

Artigos Relacionados