Descoberto bruto esquema milionário de corrupção na AGT por via do pagamento do IVA
Pode-se dizer que se trata de um ‘esquema milionário’, que pelo menos durante meses funcionou na perfeição, sem levantar qualquer tipo de suspeitas e/ou mesmo feito soar os alarmes dos mecanismos de controlo e gestão dos fundos públicos, até que em meados de 2021 uma equipa de trabalho afecta à Inspecção Geral de Finanças foi chamada a entrar em acção, pondo termo a uma autêntica ‘farra financeira’, que acabou por desviar do caminho da Conta Única do Tesouro (CUT) milhões e milhões de kwanzas.
O alegado esquema de corrupção, relatado com dados por uma fonte ligada à Inspecção Geral de Finanças, teve no seu epicentro uma “inusitada decisão” da Administração Geral Tributária (AGT), que, a pretexto de pretender apoiar a Caixa de Previdência e Aposentações dos Trabalhadores Tributários (CPATT) — uma associação mutualista, sem fins lucrativos e de inscrição obrigatória —, orientou a abertura de uma conta bancária específica no Banco BIC, sob o n.º 4550169_05, para o depósito de valores provenientes de aplicações do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA).
A aludida conta bancária da CPATT era, no fundo, uma “espécie de saco azul” da AGT, na medida em que passou a receber transferências provenientes da conta reembolsos de IVA (158656003.15.002), sob gestão da Administração Geral Tributária, e igualmente domiciliada no Banco BIC. Estas transferências de avultadas somas monetárias estavam, na verdade, relacionadas com taxas de juros das aplicações financeiras realizadas à margem dos instrumentos legais, uma vez que eram feitas a favor de uma entidade de direito privado sem a aprovação da Assembleia Nacional ou, no mínimo, do Ministério das Finanças (MINFIN), por se tratarem de receitas públicas.
Dito de outra maneira: a AGT mobilizava recursos da conta reembolsos de IVA aos contribuintes para, logo a seguir, fazer aplicações financeiras remuneradas. Tão-logo o banco disponibilizava os juros correspondes à aplicação efectuada, a mesma AGT transferia o referido valor para a Caixa de Previdência e Aposentações dos Trabalhadores Tributários. E esta, por sua vez, usava os recursos em pagamentos feitos sob orientação do então presidente do Conselho de Administração da AGT, cobrindo despesas por ele mesmo indicadas, como se de recursos particulares se tratassem.
Como a CPATT é um ente privado e não estatal, a sua acção de gestão não se sujeitava às mesmas regras de execução da despesa pública, o que permitiu que, entre 20 de Outubro de 2020 e 9 de Junho de 2021, fossem realizadas, a favor da conta da Caixa de Previdência e Aposentações dos Trabalhadores Tributários, pelo menos três transferências, tendo a AGT actuado como ordenante: uma no valor de mil milhões de kwanzas, outra no de mil e quatrocentos milhões de kwanzas e uma terceira no valor de três mil milhões de kwanzas, com origem na conta reembolsos de IVA.
Uma acção inspectiva, iniciada em Julho do ano passado, liderada por um grupo de trabalho criado por despacho ministerial pela ministra Vera Daves — com o objectivo de avaliar a legalidade dos actos praticados pelos órgãos de gestão e administração da CPATT, por conta exactamente das despesas e aplicações de fundos provenientes da conta de reembolsos de IVA —, chegou, com base em vários documentos de prova, à conclusão “algo ruidosa” de que a AGT estaria a actuar com um “caixa 2”, sem que, para isso, tivesse notificado ou contado com o concurso do departamento ministerial a que está afecto, o MINFIN.
Apesar de a equipa inspectiva ter chegado ao esquema montado, o trabalho desenvolvido enfrentou inúmeros obstáculos, devido a condicionalismos derivados do acesso à informação e/ou a documentos de suporte que ficaram por ser apresentado. Estes obstáculos não permitiram, por exemplo, que a acção inspectiva tivesse analisado outras contas da CPATT, domiciliadas em outras dependências bancárias, senão a do Banco BIC, já que em em relação a outras contas tiveram apenas acesso a extractos bancários, sem qualquer documentos de suporte.
Ainda assim, a conclusão dos especialistas foi inequívoca e baseada no facto de que os recursos disponíveis para a realização de reembolsos de IVA terem sido utilizados para a constituição de aplicações financeiras, gerando rendimentos ou juros que eram depois desviados ou transferidos para a conta bancária da CPATT, sem qualquer respeito às normas de execução das receitas públicas, limitando-se a associação mutualista a actuar sob orientações directas que recebia do recém-exonerado PCA da AGT Cláudio Paulino dos Santos.
Receitas públicas ou privadas?
Mas, para uma melhor compreensão do facto, a fonte do !STO É NOTÍCIA recomenda uma abordagem ao modelo do IVA e as atribuições da AGT, estabelecendo depois uma colagem à Caixa de Previdência e Aposentações dos Trabalhadores Tributários, a entidade rendeira da Caixa de Previdência e Aposentação dos Trabalhadores das Alfândegas (CPA), constituída a 9 de Julho de 1938.
Ao definir o modelo de aplicação para a arrecadação do IVA, o legislador angolano adoptou um paradigma diferente dos demais impostos, cujas receitas são alocadas directamente para a Conta Única do Tesouro (CUT). No caso do IVA, o modelo adoptado para efeitos de execução de reembolsos aos contribuintes é outro, estando esta tarefa confiada à AGT, sem que, no entanto, as receitas daí advindas sejam consideradas partes do património da Administração Geral Tributária.
Aliás, o artigo 52.º do Código do IVA determina que quaisquer rendimentos provenientes da aplicação dos recursos existentes na conta de reembolsos de IVA são receitas públicas, independentemente de serem arrecadas de forma “singular ou excepcional”. Facto justificado com a necessidade de se “garantir rapidez e agilidade na execução de reembolsos de IVA a favor dos contribuintes”.
A chamada “singularidade ou excepcionalidade” é explicada com o facto de a arrecadação, em sede do Código do IVA, prever que das receitas arrecadadas diariamente 75% sejam recolhidas para a CUT e os outros 25% para a conta de reembolsos. Porém, e com base nas projecções anuais que são feitas para o Orçamento Geral do Estado (OGE), este valor pode variar em função da fixação de percentagens diferentes, desde que para a conta de reembolsos de IVA estas dotações nunca sejam inferiores a 20% das receitas diariamente arrecadadas.
Ao decidir de forma autónoma pela aplicação financeira dos recursos disponíveis na conta de reembolsos de IVA e, por conseguinte, destinar os rendimentos/juros daí resultantes à gestão da Caixa de Previdência e Aposentações dos Trabalhadores Tributários, a AGT passou a actuar como se do seu próprio património dissesse respeito, quando, na verdade, eram recursos que o Estado lhe havia confiado com o único objectivo de proceder a reembolsos de IVA a favor dos contribuintes.
De acordo com explicações obtidas de uma fonte da Inspecção Geral de Finanças, não sendo parte do seu património, o que se aguardava da AGT é que os rendimentos resultantes dessas aplicações feitas à margem da lei fossem integrados como parte das receitas públicas e canalizados para a CUT e não para a cobertura de despesas realizadas por um ente privado sob orientações do seu PCA, por um lado.
Por outro lado, reforçou a fonte, admitindo-se a hipótese que o procedimento da AGT não violasse qualquer normativo, o recomendável era ela apresentar um orçamento e um plano de actividades que fossem aprovados pelo MINFIN, prevendo já a aplicação financeira dos recursos existentes na conta de reembolsos de IVA, os respectivos rendimentos e a sua consequente transferência a favor da CPATT. O que não aconteceu, tendo a AGT inobservado os limites estabelecidos por lei.
A tese apresentada pelo ex-PCA da AGT
Documentos em posse da Inspecção Geral de Finanças apontam que o ex-PCA da AGT teria apresentado uma posição contrária àquela defendida ou feita constar no relatório inspectivo. De acordo com o que o !STO É NOTÍCIA conseguiu apurar, quando ouvido em auto de declarações à data dos factos, Cláudio Paulino dos Santos confirmou os pagamentos de despesas por si orientadas, justificando-as com “situações e necessidades pontuais”, fazendo valer que os pagamentos foram sempre realizados em nome da própria AGT.
Já em relação ao facto de estar em causa o “uso abusivo” da conta de reembolsos de IVA, Cláudio Paulino dos Santos teria apresentado uma ‘tese’ algo inquietante para o grupo de inspectores que conduziu o processo, na medida em que discordou inclusive que se se tratasse de uma conta com recursos do Estado. Segundo apurou este portal, o ex-PCA da AGT defendeu que os recursos aplicados pertencem aos contribuintes, muito embora geridos pela AGT, pelo que, defendeu, os rendimentos resultantes da aplicação desta constituem receita própria da AGT, à semelhança dos valores resultantes da venda da revista tributária ou parte das receitas provenientes dos leilões realizados.
E disse mais Cláudio Paulino dos Santos, em sua defesa: “Por serem receitas próprias, a AGT utiliza estes valores para realizar as suas despesas, tanto ordinárias como as resultantes dos créditos adicionais, sendo que a transferência para a CPATT configura uma despesa da AGT”.
A exoneração de Cláudio Paulino dos Santos
Uma outra fonte com ligações às Finanças garantiu ao !STO É NOTÍCIA que a nomeação de José Vieira Leiria ao cargo de presidente da Administração Geral Tributária, em substituição de Cláudio Paulino dos Santos — exonerado por despacho ministerial a 21 de Janeiro deste ano —, deveu-se ao referido “esquema milionário”, orquestrado pela anterior gestão da AGT, com a conivência da Caixa de Previdência e Aposentações dos Trabalhadores Tributários.
Segundo a fonte, só assim se justifica a sua exoneração, na medida em que Cláudio Paulino dos Santos deixou o cargo de PCA da AGT com um recorde de receitas de 9,9 biliões kwanzas em relação ao ano de 2021, um salto de 45,6% em relação ao montante arrecadado em 2020, de 6,8 biliões kwanzas. Por outro lado, em 2020, a AGT havia definido uma meta de arrecadação de receita fiscal para 2021. Esta foi, entretanto, ultrapassada em 23%, tendo-se registado um crescimento do número de contribuintes de 7,8%, em relação ao ano de 2020, superior em 1,4 pontos percentuais à meta estabelecida de 5%.
Lista de ilícitos criminais
O grupo de inspectores do Ministério das Finanças teria, segundo apurou o !STO É NOTÍCIA, constatado na actuação da AGT, desvios graves às normas de gestão de fundos públicos, o que pode vir a resultar em vários ilícitos criminais, como: “violação do princípio da legalidade”, “violação do princípio da probidade pública, “violação do princípio do respeito ao património público”, “violação do princípio da prossecução do interesse público”, “violação do princípio da responsabilidade e responsabilização”, “violação do princípio da lealdade”, “incumprimento do previsto, no capítulo sétimo, da Lei que aprova o Código de Imposto sobre o Valor Acrescentado”, “incumprimento do previsto, no capítulo sétimo, do Código de Imposto sobre o Valor Acrescentado”, “associação criminosa”, “peculato” e “abuso de poder”.
Ao que apurou o !STO É NOTÍCIA, o dossier está já sob os cuidados da Procuradoria-Geral da República e da Inspecção Geral do Estado (IGAE), a quem competirá a formalização do competente processo judicial.