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O longo ‘calvário judicial’ travado no Tribunal Supremo

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A história do caso do juiz Manuel da Silva Pereira ‘Manico’ à frente da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) não é uma história fácil de ser contada ou explicada numa única abordagem jornalística. Primeiro, porque requer um exercício de memória dos factos que lhe deram origem, e, segundo, porque existem decisões judiciais pelo meio que tardam a ser tomadas, e acabam por tornar em si difícil o entendimento sobre esse processo. Todavia, os factos, e somente estes, falam por si!

Em Fevereiro deste ano, em sede de um ‘Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade’ (mecanismo legal utilizado quando em causa existe um direito constitucional violado), intentado pelo venerando juiz do Tribunal Supremo Agostinho Santos — o candidato inconformado com o resultado do concurso curricular para o provimento do cargo de presidente da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) —, o Plenário do Tribunal Constitucional declarou-se ‘incompetente’ para julgar um caso que não tinha chegado sequer a ser discutido e julgado junto da instância máxima da jurisdição comum, o Tribunal Supremo.

Em resposta ao referido recurso, os juízes do Tribunal Constitucional exararam um acórdão no qual deixavam claro: “para que se sane o vício, o Tribunal Supremo tem 30 dias para resolver o caso controvertido”. E mais: os juízes chegaram a indicar no acórdão o foro adequado onde a situação deveria ser dirimida: “Assim, deveria ser a Câmara do Cível e Administrativo do Tribunal Supremo a julgar e decidir, dentro das suas competências e nos prazos definidos por lei, as questões suscitadas no processo n.º 05/20”.

Os prazos a que referiram os juízes conselheiros do Tribunal Constitucional era o de 30 dias, para que a Câmara do Cível e Administrativo do Tribunal Supremo se pronunciasse, conforme determinado no artigo 56.º do Decreto-Lei n.º 4 A/96, de 5 de Abril, referente à impugnação dos actos administrativos.

Entretanto, a decisão dos juízes do Constitucional não foi unânime, porque houve um voto vencido da juíza conselheira Maria da Conceição de Almeida Sango, a relatora do processo a nível daquele tribunal político. Ou seja, Conceição Sango não concordou com a decisão tomada pelo Plenário daquela instância judicial, tendo deixado expressos os seus argumentos de razão numa declaração de voto vencido à qual far-se-á igualmente recurso para um melhor entendimento deste polémico caso.

O silêncio tumular que dura até hoje

 A que se refere então o Processo n.º 05/20, que deu origem a todo essas idas e vindas a nível dos tribunais superiores? O processo n.º 05/20 é um expediente que deu entrada no Tribunal Supremo a 23 de Janeiro de 2020, com o fundamento no artigo 74.º da Constituição da República de Angola (Providência de Acção Popular), contra a decisão de o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) — órgão responsável pela realização do concurso curricular para o provimento do cargo de presidente da CNE — ter designado o juiz Manuel da Silva Pereira ‘Manico’ vencedor do referido acto.

Depois de ter chegado pela primeira vez àquela instância judicial, o referido processo ficou mais de 12 meses sem qualquer pronunciamento do Tribunal Supremo. Igual destino tiveram as sucessivas reclamações apresentadas nos meses de Abril e Maio de 2020 pelos requerentes do processo, conforme é relatado no Acórdão n.º 664, dos juízes conselheiros do Tribunal Constitucional.

Na origem do processo está o facto de dois dos concorrentes, nomeadamente: Manuel da Silva Pereira ‘Manico’, que é acusado de ter excedido os prazos legalmente estabelecidos para o exercício dos mandatos na CNE, isto é, dez anos; ter entregue, fora do prazo de 20 dias, a acta de defesa de doutoramento e não o certificado; e, por outro lado, ter merecido num dos critérios do concurso 20 pontos quando ainda ostentava o grau académico de mestre, pelo qual teria recebido 15 e não 20 pontos, como veio a acontecer;

O outro caso é o de Sebastião Diogo Bessa, que, à data dos factos — de realização do concurso curricular para o provimento do cargo para presidente da CNE —, se encontrava no fim do exercício do segundo mandato na referida comissão.

Mais: os requerentes reclamaram ainda do facto de o Conselho Superior da Magistratura Judicial ter admitido documentos comprovativos de avaliações como magistrados, alegadamente, sem a devida fundamentação, uma vez que o diploma que aprova o regulamento do próprio Conselho exige que as avaliações sejam fundamentadas e homologadas pela sua Comissão Permanente do mesmo conselho.

Uma outra acusação prende-se com o facto de o Conselho Superior da Magistratura Judicial ter introduzido o ‘critério experiência eleitoral’, sem qualquer fundamento na Lei Geral sobre as Eleições e na Lei sobre a Organização e e Funcionamento da CNE. O objectivo pretendido, de acordo com o exposto no Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, teria sido o de “favorecer alguns concorrentes, neste caso concreto Manuel da Silva Pereira e Sebastião Diogo Bessa”.

 Os factos em retrospectiva

No início do ano, contrariamente à indicação do acórdão do Constitucional, o processo foi, entretanto, entregue a uma outra câmara, ou seja, não à Câmara do Cível e Administrativo, como entendeu o Plenário do Constitucional, mas à Câmara Criminal do Tribunal Supremo.

Informações a que o jornal !STO É NOTÍCIA teve acesso, indicam que o juiz presidente da Câmara Criminal, Daniel Modesto, chegou a exarar um despacho, “sem o fundamentar”, alegando que o processo que foi alvo do acórdão do Constitucional “já era um caso julgado”. Ou seja, Daniel Modesto entende que “o Tribunal Supremo já se pronunciou sobre o mesmo”.

As explicações técnicas

 O jornal !STO É NOTÍCIA foi, entretanto, ao encontro de um especialista em direito para o devido esclarecimento técnico sobre a questão. A fonte, que preferiu manter a sua identidade reservada por razões profissionais, explicou que era expectável, no referido processo, que o assunto fosse decidido junto da Câmara do Cível e Administrativo, tal como ficou plasmado no acórdão do Constitucional.

Para isso, esclareceu o especialista, o juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, teria de proceder à entrega do processo à Câmara do Cível e Administrativo, para que o mesmo fosse distribuído. “E só caso os juízes daquela câmara estivessem impedidos de se pronunciar, este transitaria automaticamente para a Câmara mais próxima, que seria, no caso, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo e nunca a Câmara Criminal”, salientou.

Segundo o especialista, em cada uma dessas câmaras, seja do Cível e Administrativo, como na do Trabalho — que seria a câmara a seguir, em caso de transição —, “o processo teria de ser submetido a um mecanismo de rifa, e, em caso de impedimento dos juízes dessas câmaras, aí sim, este transitaria para a Câmara Criminal e posto lá teria de ser igualmente distribuído pelo seu presidente por meio de rifas e não decidido directamente pelo responsável da câmara”.

Para o especialista, a ser verdade que houve o despacho do juiz Daniel Modesto, como afirmou a fonte deste jornal, espera-se agora que seja o Plenário do Tribunal Supremo a julgar e a decidir sobre a continuidade ou não do juiz Manuel da Silva Pereira à frente da CNE. Para que tal aconteça, o juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, terá de convocar o plenário daquele órgão para deliberar sobre o assunto.

No entanto, a história não deverá ficar por aí: “Caso o Plenário do Tribunal Supremo decida pela continuidade do juiz Manico, os requerentes podem, ainda assim, voltar a recorrer ao Tribunal Constitucional, já que da decisão do Plenário do Tribunal Supremo cabe ainda recurso ao Tribunal Constitucional. O que em termos práticos significa dizer que, caso a decisão do plenário do Tribunal Supremo não seja favorável ao autor do recurso, neste caso o candidato requerente, este pode voltar a bater à porta do Tribunal Constitucional para que este, em definitivo, decida o processo.”

Por outro lado, a situação também se coloca em relação ao actual presidente da CNE, que, em caso de ‘derrota’, também terá a prerrogativa de recorrer a um tribunal de recurso para expor os seus argumentos.

Relatora alertou sobre a credibilidade da CNE

 A juíza relatora do processo a nível do Tribunal Constitucional, Maria da Conceição de Almeida Sango, já havia chamado a atenção para a omissão do Tribunal Supremo nesse processo. Na sua declaração de voto vencido, a juíza conselheira defendeu a necessidade de protecção do interesse público nesse processo.

“O silêncio do Tribunal Supremo em relação à presente acção popular, que ataca um concurso de que resultou a designação do presidente da CNE, longe de atacar interesses próprios dos recorrentes, vulnera um interesse público de grande relevo, conexo com a estabilidade e credibilidade daquela instituição, pelo que a urgência na decisão e o encerramento da contenta jurídica se impunha com maior pujança”, pode lê-se na sua declaração.

No entendimento da juíza Maria da Conceição Sango, o Tribunal Constitucional “deveria declarar inconstitucional a inércia do Tribunal Supremo em relação ao Processo n.º 05/20 (Acção Popular)”, por este órgão judicial ter violado um conjunto de artigos da Constituição da República de Angola (2.º; 6.º; 29.º; 72.º; n.º 2 do artigo 174.º), conjugados com o artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, n.º 1 do artigo 45.º e artigo 56.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril (sobre a impugnação do actos administrativos).

Presidente do Supremo faz ultrapassagem à direita

Em 19 de Fevereiro de 2020, a Assembleia Nacional conferiu posse ao juiz Manuel da Silva Pereira, na sequência de uma nota assinada pelo juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo e do Conselho da Magistratura Judicial, Joel Leonardo, na qual informava ao Parlamento que o candidato Agostinho Santos — um dos requerentes do ‘recurso extraordinário de inconstitucionalidade’ — “tinha desistido de todas as acções intentadas junto da Câmara do Cível e Administrativo do Tribunal Supremo”.

A nota, acatada pelos deputados, permitiu assim que Manuel da Silva Pereira tomasse posse como presidente da CNE. Porém, nesse mesmo dia, enquanto a Assembleia Nacional dava posse ao juiz Manuel da Silva Pereira ‘Manico’, o concorrente Agostinho Santos fez ouvir a sua voz, lançando um alerta público aos órgãos de soberania do país:

“Foi com profunda consternação e repulsa que tomei conhecimento de que o presidente do Tribunal Supremo e do Conselho Superior da Magistratura Judicial, o venerando juiz conselheiro Joel Leonardo, enviou hoje, dia 19 de Fevereiro de 2020, uma nota assinada por ele comunicando àquela augusta Assembleia Nacional — que se encontrava a debater no momento sobre o empossamento ou não do futuro presidente da CNE — de que o candidato Agostinho Santos teria desistido de todas as acções por ele intentada junto da Câmara do Cível e Administrativo do Tribunal Constitucional”, começou por rebater Agostinho Santos, através de um áudio posto a circular nas redes sociais e reproduzido mais tarde pelos órgãos de comunicação social.

“Venho por meio comunicar à opinião pública, em geral, e, em particular, aos órgãos de soberania deste país, que tal nota não corresponde com a verdade, visto que não desisti e tão-pouco tenciono fazê-lo em nome do respeito à Constituição e à lei que jurei cumprir e fazer cumprir. Aproveito o ensejo para informar que o referido acto, praticado pelo presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial e do Tribunal Supremo, Dr. Joel Leonardo, incorre em responsabilidade criminal, civil e política, sobre o qual daremos o competente seguimento nos próximos dias”, prometeu.

Nok Nogueira

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