Empresário libanês falsifica acções nas ‘barbas’ do Ministério da Justiça e das Finanças e usurpa moageira
Imaginem que uma determina empresa, legalmente constituída e com os accionistas em pleno gozo dos seus direitos, passe, de um dia para o outro, a enfrentar um “pesadelo judicial” capaz de dar a impressão de que a ficção supera a própria realidade. Ou seja, num dia são accionistas e no outro, sem que tenham decidido abdicar das suas participações na referida sociedade comercial, deixam de o ser, tudo porque foram produzidas, isto é, falsificadas, acções com o concurso de órgãos afectos ao Ministério da Justiça e das Finanças.
Por mais que pareça um facto ficcionado, a verdade é que se trata de uma situação real, que está a acontecer em Angola e na capital do país. Um empresário libanês, que atende pelo nome de Abdul Hamid Assi, conseguiu que o 1.º Cartório Notarial de Luanda e mais uma Repartição Fiscal das Finanças conseguissem legalizar um conjunto de documentos representativos de acções na sociedade anónima Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A., levando a que “tomasse de assalto” uma empresa para a qual tinha sido designado para cuidar da sua gestão.
O !STO É NOTÍCIA teve acesso, através de uma fonte do Ministério da Justiça e da Direcção Nacional dos Registos e do Notariado, a toda a panóplia documental e comprovativos que ajudam a reconstituir os acontecimentos que levaram a que Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A passasse a constar de uma espécie de “tragicomédia judicial”, que coloca não só em causa o “feito” alcançado pelo empresário libanês, mas também duas instituições afectas a dois departamentos ministeriais de grande vulto. No entanto, o que se sabe é que já corre, na Justiça, um inquérito para se apurar o facto.
Os factos tal como eles ocorreram
Em 2017, Abdul Hamid Assi foi designado, em Assembleia Geral de accionistas da Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A, para exercer o cargo de presidente do Conselho de Administração da referida empresa. Volvidos dois anos, os accionistas teriam tomado conhecimento de alegadas práticas lesivas aos seus interesses e da Kikolo, agravado com o facto de o empresário libanês se recusar a prestar qualquer informação sobre a vida da sociedade.
Excedido o tempo de mandato do Conselho de Administração presidido por Abdul Hamid Assi, os accionistas teriam resolvido deliberar em nova Assembleia Geral não renovar o mandato do empresário libanês, indicando novos membros para os órgãos sociais da empresa.
No entanto, para surpresa dos accionistas, Abdul Hamid Assi teria se recusado, à data dos factos, reconhecer a deliberação da Assembleia Geral, assim como entregar a Kikolo e a sua sede social, colocando seguranças armados, com ordens expressas para fazerem o uso da força, se fosse o caso, para impedir que os accionistas e os novos membros sociais designados acedessem ao interior das instalações.
A acção em tribunal e as verdades daí advindas
Uma providência cautelar é instaurada contra o empresário Abdul Hamid Assi, na sequência dos factos aqui espelhados, e em sede da qual vários factos viriam à tona, como o polémico caso da falsificação das acções da Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A, que teria contado, segundo os documentos a que o !STO É NOTÍCIA teve acesso, com o concurso directo do advogado do empresário, que atende pelo nome de Teodoro Bastos de Almeida.
“Há inclusive declarações prestadas no referido processo-crime instaurado contra o senhor Abdul Hamid Assi, que afirmam que as falsas acções, fraudulentamente emitidas, foram assinadas em casa do advogado Teodoro Bastos de Almeida, e que este advogado é, na verdade, o mentor de toda a actuação do senhor Abdul Hamid Assi, pois diz ter acesso a altas personalidades do país e que facilmente consegue manipular as instituições, como, aliás, tem vindo a fazer”, lê-se num documento em posse da Direcção Nacional dos Registos e do Notariado a que este portal acedeu.
Com base nas declarações prestadas em tribunal e constantes nos documentos consultados por este portal, Abdul Hamid Assi teria praticado uma série de actos ao arrepio dos estatutos da Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A e da lei, como, por exemplo, “publicar no Jornal de Angola uma convocatória de uma reunião de Assembleia Geral da empresa sem o conhecimento de qualquer dos accionistas e do presidente da Mesa da Assembleia, a quem competia, na verdade, convocá-la”.
Entretanto, o empresário não se teria ficado só por aí: realizou a referida reunião da Assembleia Geral de accionistas, contando “só com a sua presença e de mais duas pessoas estranhas à sociedade”, tendo, na sequência, “destituído os membros dos órgãos sociais e nomeado outros em substituição”; “aprovou relatórios e contas, determinando também o modo como seriam destinados e utilizados o capital, as receitas e o património da sociedade”.
A falsificação das acções
O facto mais grave imputado ao empresário Abdul Hamid Assi e ao advogado, de acordo com a documentação em posse do Ministério da Justiça, tem que ver a com a confissão, em tribunal, do próprio empresário de que teria sido ele mesmo a emitir — “para dessa forma ostentar a qualidade de accionista” — as acções. Para tal, Abdul Hamid Assi teria forjado um Livro de Registos de Acções, que o mesmo teria criado junto de uma Repartição Fiscal das Finanças, que os documentos não fazem referência qual, e junto do 1.º Cartório Notarial de Luanda.
Com base nestes actos descritos, Abdul Hamid Assi teria praticado ainda outros, tendo feito alterações à titularidade das contas da sociedade nos vários bancos, e “falsificado” inclusive os documentos apresentados a estas instituições financeiras.
Daí por diante, tal como descreve o documento em posse do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, abriu-se uma “auto-estrada” para que outros actos fossem realizados, tais como a “transferência para o estrangeiro de altas somas em dinheiro, sem justificação mercantil e escritural que justificassem, tudo isso apresentando às autoridades documentos falsos em nome da Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A”.
De acordo com uma exposição feita ao ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz — que tem servido de base de inquérito—, o empresário Abdul Hamid Assi tem praticado estes “actos criminosos” com o concurso de funcionários públicos e de advogados, com destaque para o advogado Teodoro Bastos de Almeida, que, como contrapartida — asseveram —, teria sido nomeado presidente da Mesa da Assembleia Geral da Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A.
Há ainda na documentação consultada registos de actos praticados junto das Conservatórias do Registo Comercial e Predial, assim como notários, onde o empresário libanês teria procedido a uma série de registos de actos sociais e relativos ao património imobiliário da Kikolo, assim como “legalizar documentos falsos, apesar de já ter sido efectuado o registo de acções judiciais pendentes relacionadas com a sociedade”.
A sentença do Tribunal da Comarca de Luanda
A 2.ª Secção da Sala do Comércio, Propriedade Intelectual e Industrial chegou a proferir, em 2021, uma sentença, no âmbito do Processo n.º 012/21-A, no qual são requerentes os accionistas da Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A e co-requerido, isto é, o 1.º requerido, o empresário Abdul Hamid Assi. A referida sentença considera indicialmente provados vários factos, entre os quais se destacam:
Que os requerentes, ou seja, os accionistas são de facto e de jure os accionistas legais da Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A., com capital social de 3.000.000,00kz, cujas acções são ao portador; e que o requerido Abdul Hamid Assi “não tem a posse das referidas acções”, por “não possui direitos ou legitimidade para proceder nos termos em que faz”.
O Tribunal da Comarca de Luanda faz constar da sentença que o empresário Abdul Hamid Assi também “possui acções da sociedade Kikolo, por si emitidas”, no entanto, faz esclarece que o mesmo “não junta com as referidas acções documentos relativos ou conexos à emissão das acções ao portador de que possui, com vista a fazer prova que aquelas possuem valor probatório considerável”.
“O que permite este tribunal concluir pela prevalência das acções ao portador dos co-requerentes, no âmbito do juízo de verosimilhança que se impõe neste tipo de procedimento cautelar”, lê-se na página 19 da sentença proferida pela 2.ª Secção da Sala do Comércio, Propriedade Intelectual e Industrial.
São accionistas da Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A Rui Jorge Teixeira da Costa Reis, Carlos Alberto dos Santos, Intercomercial Moagens, Limitada, sociedade de direito angolano por quotas; Camomila – Sociedade Imobiliária, S.A, sociedade de direito angolano anónima; e a Azul Marinho — Sociedade Imobiliária, S.A, igualmente uma sociedade de direito angolano anónima.
O !STO É NOTÍCIA tentou estabelecer contacto com o empresário libanês Abdul Hamid Assi, visado no processo em inquérito, mas este está incomunicável. Quanto aos accionistas da Kikolo – Sociedade Industrial de Moagem S.A, este portal conseguiu chegar à conversa com um deles, que se mostrou indisponível para prestar declarações à imprensa, por um lado, a pedido da equipa de advogados, e, por outro, por estar a correr uma acção em tribunal e nas instituições de investigação criminal.