Isto É Notícia

Associações defendem extinção da CIVICOP e o surgimento de uma Comissão da Verdade após polémica sobre as “ossadas falsas”

Partilhar conteúdo

As associações M27 e o Grupo de Sobreviventes do 27 de Maio defendem a extinção da Comissão de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP), para que, em seu lugar, possa surgir uma ‘Comissão da Verdade’, que seja “independente” e “não governamentalizada”. A posição vem expressa numa carta aberta dirigida, a partir de Lisboa, ao Presidente João Lourenço.

O documento — que surge poucos dias depois de serem conhecidos os resultados das perícias médico-forenses apresentados, no passado dia 21 de Março, pelo professor doutor Duarte Nuno Vieira a um grupo de familiares de desaparecidos no chamado ‘processo 27 de Maio de 1977’ — propõe que, além de entidades angolanas, sejam convidadas a fazer parte da referida comissão organizações internacionais.

“A CIVICOP deveria ter sido uma comissão independente, não governamentalizada, dirigida por uma personalidade angolana, acima de qualquer suspeita, integrando também organizações internacionais, tais como a Cruz Vermelha Internacional, a Amnistia Internacional, a União Africana e até mesmo as Organização das Nações Unidas. Nela deveriam ter participado as famílias e os sobreviventes deste processo”, observam as associações na carta aberta, que propõe uma segunda via:

“Apelamos, assim [ao Presidente João Lourenço], para que extinga a CIVICOP, e dê o passo decisivo para a criação de uma Comissão de Verdade, afinal o primeiro assunto a ser tratado, e então, quem sabe, talvez a reconciliação aconteça, o perdão seja pedido e o abraço se dê”.

Os resultados das perícias efectuadas no Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses de Lisboa, em confronto com as amostras ósseas entregues por Angola à equipa portuguesa, confirmaram que as amostras ósseas recolhidas em solo angolano não correspondem a quem eram imputados, contrariamente ao que fora anunciado pela CIVICOP em Angola.

Francisca Van Dunem, irmã de Zé Van Dunem

O professor doutor Duarte Nuno Vieira, que liderou a equipa portuguesa de médicos forenses, disse que os resultados dizem respeito a “uma evidência científica” e não a uma simples opinião a respeito do assunto, tendo lamentado, por outro lado, que os laboratórios angolanos não tenham as “aptidões necessárias para realizar estudos de recuperação de ADN em ossos”.

“Assim, face às conclusões ali apresentadas, as associações referidas, tomam as seguintes posições públicas: Manifestam, inequivocamente, a sua solidariedade e concordância com a carta que os órfãos da Associação M27 dirigiram ao povo angolano, juntando as suas vozes à deles, em todos os fóruns nacionais e internacionais, condenando e desmascarando este simulacro de reconciliação montado pela CIVICOP”, escrevem.

As associações M27 e o Grupo de Sobreviventes do 27 de Maio criticam também o facto de ter sido anunciada, de forma individualizada, a descoberta de restos mortais de vítimas conhecidas, sem que para tal tivesse sido precedido de perícias, estudos antropológicos e de genética credíveis.

Tudo isso, acrescentam, “levou alguns familiares a caírem no logro, e a própria Igreja Católica a participar inesperadamente, dando o seu beneplácito à cerimónia pública, organizada pela CIVICOP, na suposta vala comum de onde, sabemos agora, não saíram os restos mortais anunciados”.

As duas associações consideram que o acto solene do dia 26 de Maio de 2021, no qual o Presidente João Lourenço “pediu humildemente desculpas e perdão — manifestando a vontade de pôr fim à angústia que as famílias carregam consigo por falta de informação sobre o destino dado aos seus entes queridos — fica agora bastante descredibilizado”.

“Senhor Presidente João Lourenço, queremos acreditar na sua boa vontade para a solução deste assunto e nas palavras que sobre ele já proferiu. A CIVICOP é o chamado prego na engrenagem”, frisam.

Uma das páginas do Jornal de Angola

Carta dos Órfãos da Associação M27

 Numa outra carta pública, os órfãos do processo do 27 de Maio de 1977 justificam a iniciativa de terem procedido a exames forenses independentes com o facto de nem todos terem recebido de forma “acrítica” os restos mortais que lhes foram indicados como pertencentes aos seus entes queridos, daí terem pedido a realização de testes de ADN para confirmar a identidade dos cadáveres.

“E foi com espanto e dor que feitos os exames se concluiu que nenhuma das amostras corresponde à de cadáveres dos nossos pais…! Incrédulos, perguntamos porquê nos fazem isto? Porquê nos fizeram isto? Não chegou terem-nos imposto uma vida familiar amputada, sempre marcada pela tristeza da perda dos nossos pais? Não bastou o Estado ter demorado mais de 40 anos — mais do que a idade da maioria das vítimas — para tentar assegurar às vítimas o direito à identidade?”, questionaram os órfãos em carta.

Para os familiares das vítimas do 27 de Maio de 1977, ao que assistiu em 2022 foi a um exercício de crueldade, em que se reavivaram gratuitamente sentimentos de perda, de dor e de mágoa, com objectivos que nada têm de nobre.

Partindo do princípio de que “nenhum dos restos examinados corresponde às pessoas a quem se disse pertencerem”, os órfãos questionam agora sobre o que se passará com os restos mortais já entregues às famílias e enterrados sem exames prévios.

“As autoridades dirão agora que foi um erro. Um engano que pode ser reparado, com novas pesquisas e indagações. E nós perguntamos: quantas mais pesquisas e indagações serão necessárias para se chegar à verdade? Quantas mais amostras de cadáveres nos serão entregues, em vão?”, deixam no ar a questão.

ISTO É NOTÍCIA

Artigos Relacionados