“A ameaça fascista persiste”. Chico Buarque recebe Prémio Camões quatro anos depois
O músico e escritor Chico Buarque recebeu, nesta segunda-feira, 24, o Prémio Camões, após quatro anos de espera. Numa cerimónia que contou com os Presidentes Lula da Silva e Marcelo Rebelo de Sousa, no Palácio de Queluz, em Sintra.
O artista deixou palavras de agradecimento e disse-se reconfortado por o ex-Presidente Jair Bolsonaro não ter “sujado” o seu diploma. E deixou um aviso: “a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda a parte”.
“Lá se vão quatro anos que o meu prémio foi anunciado”, declarou Chico Buarque. “No que se refere ao meu país, quatro anos de governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás”.
O cantor, compositor e escritor lembrou que, apesar de o governo de Bolsonaro ter sido derrotado nas urnas, “não podemos nos distrair”, já que “a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda a parte”.
“Hoje, porém, reconforta-me lembrar que o ex-Presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu prémio Camões, deixando o seu espaço em branco para a assinatura do nosso Presidente Lula”, afirmou.
Visivelmente emocionado, Chico Buarque deixou palavras de agradecimento ao pai, que o introduziu à literatura e à Música Popular Brasileira (MPB).
“Mais para o fim da vida, participou na fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo”, vincou o vencedor do Prémio Camões.
“Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a explicar-nos um pouco”, declarou.
“Enquanto descendente de judeus sefarditas, perseguidos pela inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa, a modo da reparação histórica”, disse, entre risos.
O músico e escritor quis ainda deixar claro que “por mais que leia e fale de literatura, por mais que publique romances e contos, por mais que receba prémios literários”, faz gosto em ser reconhecido no Brasil “como compositor popular, e em Portugal como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim”.
“Valeu a pena esperar por esta cerimónia, marcada não por acaso para a véspera do dia em que os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos”, declarou.
Prémio “é uma evidência e impunha-se”, diz Marcelo
Marcelo Rebelo de Sousa fez o discurso de abertura da cerimónia, considerando que o prémio “é uma evidência e impunha-se” e referindo-se a Chico Buarque de Hollanda como “o celebrado de hoje, como de há quatro anos, como de sempre”.
“Meu caro amigo, me perdoe, por favor, essa demora”, pediu o Presidente português. “Saudando a decisão do júri do Prémio Camões e as razões da sua decisão, suspeito que por uma vez ninguém precisaria da fundamentação dessa decisão, de tal forma ela se impõe como evidência, acima de tudo poética, mas também romanesca”.
O chefe de Estado português fez também referência à data escolhida para a entrega do diploma, considerando este dia, “que há 49 anos foi o último da ditadura (…) é mais um assinalável no encontro entre Brasil e Portugal em democracia”.
“Ao escritor que deu o nome a este prémio, uma expressão comum atribui, como se fosse coisa sua, a nossa língua: a língua de Camões”, que “sem dúvida que levou muitíssimo longe as possibilidades expressivas da língua”, declarou Marcelo.
“E a que português ou lusófono faria impressão usar como equivalente de ‘a língua de Camões’ o termo ‘a língua de Chico Buarque’, tendo em conta a altura, a emoção, a ductilidade, a imaginação, a que ele levou o português cantado por si e por tantos?”, questionou o Presidente português.
Prémio é “resposta do talento contra a censura”, frisa Lula
Para o chefe de Estado brasileiro, que também discursou, é “uma satisfação corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos”. “Digo isso, porque esse prémio deveria ter sido entregue em 2019 e não foi”, declarou.
“Todos nós sabemos porquê. O ataque à cultura em todas as suas formas foi uma dimensão importante do projecto que a extrema-direita tentou implementar no Brasil. Se hoje estamos aqui para fazer essa espécie de reparação e celebração da obra do Chico, é porque finalmente a democracia venceu no Brasil”, disse Lula da Silva, seguido de aplausos.
“Esse prémio é uma resposta do talento contra a censura, do génio contra a força bruta, um prémio escolhido por unanimidade por jurados de Portugal, do Brasil, de Angola e de Moçambique”.
O Presidente brasileiro dirigiu-se ao “querido Chico” para lhe dar os parabéns e afirmar que “ninguém merece este prémio mais do que” o músico e escritor, que fez da sua obra “uma declaração de amor à literatura portuguesa”.
“Quando eu era ainda muito pequeno, queria ser compositor, cantor, escrever peças de teatro” e romances, contou Lula, dirigindo-se directamente a Chico Buarque:
“Falei para a minha mãe que queria ser isso tudo e ela falou: ‘Não meu filho, isso não pode ser. Porque já nasceu um menino dois anos mais velho do que você chamado Chico Buarque, que vai ser o mais importante’”.
“Aí falei para a minha mãe: ‘E eu, o que vou ser?’”, ao que esta respondeu “se prepare, você vai ser Presidente”.
A entrega do Prémio Camões de 2019 a Chico Buarque acontece quatro anos depois de a sua atribuição ter sido anunciada, em Maio de 2019. Na altura, o então Presidente Jair Bolsonaro não quis assinar o diploma do prémio.