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O que falta dizer depois do discurso de João Lourenço

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Este ano a evocação dos acontecimentos de 27 de Maio de 1977 e suas dramáticas consequências foi pela primeira vez patrocinada pelo próprio Executivo.

Tal facto representa uma viragem completa na postura da direcção política do país. E essa mudança tomou forma radicalmente diferente do passado, através do corajoso discurso do presidente da República, João Lourenço, que veio “junto das vítimas dos conflitos e dos angolanos no geral, pedir humildemente, em nome do Estado angolano, as nossas desculpas públicas e o perdão” (fim de citação).

Desse importante discurso, retenho duas passagens que justificam a reflexão que farei sobre o processo de intolerância e exclusão iniciado já na luta de libertação nacional e que viria originar as várias tragédias no acesso à Independência e na Angola já independente.

A primeira passagem que retenho do discurso é esta: “Não é hora de nos apontarmos o dedo procurando os culpados; importa que cada um assuma as suas responsabilidades na parte que lhe cabe.

 Como patriota que sempre fui e tendo consagrado tanto da minha vida à luta pela independência de Angola e dignidade e bem-estar do povo angolano, também sou de opinião que não é a hora de ajuste de contas, o qual levaria a uma infinda espiral de acusações que alimentariam ressentimentos, manteriam feridas abertas e provocariam outras, pondo em perigo uma tão necessária reconciliação dos angolanos. Contudo, é fundamental que o Estado assuma plenamente as suas responsabilidades, criando condições para que os factos do passado sejam conhecidos e providenciando, entre outras medidas, o conforto moral aos familiares das vítimas, tudo fazendo para encontrar os restos mortais e certificar os óbitos para que as famílias possam evocar e honrar os seus mortos através das exéquias fúnebres. Com dor, é certo, mas de modo seguro se fará assim a reconciliação com os cidadãos. Restará saber o porquê de tanta tragédia.

Como ponto de partida convém lembrar que uma coisa é a reconciliação com cidadãos, outra coisa é a reconciliação da Nação com a História. E esta reconciliação também é necessária e urgente. Primeiro, porque o poder instalado no país desde a Independência construiu e impôs uma História de Angola que, em substancial parte, contém omissões, deturpações, mentiras. Foram intencionalmente omitidos ou deturpados factos; ilustres patriotas foram caluniados, muitos apodados de traidores; outros patriotas foram omitidos ou foi diminuído o seu importante papel na gesta nacionalista. Por outro lado, foram guindados à posição de heróis indivíduos que, através de actos políticos, realizaram ou contribuíram para acções criminosas contra os numerosos cidadãos cuja única culpa era a de pertencerem a outros partidos; e os que pertenciam ao MPLA, mas tinham opiniões diferentes da direcção partidária, eram castigados (indo o castigo até à execução). Segunda razão para a reconciliação da Nação com a História: as novas gerações precisam de conhecer a verdadeira história do país para melhor entenderem a sua complexidade e tirarem lições do passado para melhor abordar os problemas que terão pela frente.

Por isso, estou de acordo que “importa que cada um assuma as suas responsabilidades na parte que lhe cabe”. Mas o que é isso de assumirmos as nossas responsabilidades na parte que nos cabe?

Na minha opinião, assumir essa responsabilidade significa contar a verdade, contar o que se viveu e o que se testemunhou. Contar para esclarecer, não para defender interesses pessoais ou partidários. Contar para que se possa debater serenamente, confrontar versões, apurar factos. Assim se desconstruirão as mentiras edificadas nestas longas décadas em que temos um país independente após décadas de corajosa luta política e armada de tantos angolanos contra a dominação colonial portuguesa. É necessário e urgente o resgate da memória do acontecido.

Para ajudar a termos uma História de verdade, são importantes os testemunhos de protagonistas na luta nacionalista pela independência ainda vivos ou que deixaram depoimentos; dos participantes na luta interna de cada movimento nacionalista; dos protagonistas da guerra civil que precedeu o acesso à independência e que continuou no estado independente. Os investigadores encontrarão o fio condutor que os levará ao apuramento do que realmente aconteceu ao confrontarem as várias versões, muitas serão divergentes.

É fundamental que substancial parte da Academia deixe de ser correia de transmissão do poder político e procure uma efectiva independência que se reflectirá no objecto da sua pesquisa, no modo de investigar. E nas Ciências Sociais, particularmente na História, é necessário que a investigação avance sem peias, nem preconceitos, sobre o nacionalismo angolano e todo o processo que conduziu à independência de Angola e ao regime então implantado.

A reconciliação nacional deu significativos passos com a iniciativa de João Lourenço, em 2019, criando a Comissão para a Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos desde a Independência Nacional e, agora, com o seu discurso de 26 de Maio último.

Mas a reconciliação da Nação com a História é urgente e deve acompanhar o processo de reconciliação dos cidadãos para ajudar nesse processo e para que as novas gerações tenham diante de si a história do seu país contada com verdade, com os seus aspectos positivos e negativos. Isso lhes dará uma maior capacidade para compreenderem Angola como país e equacionarem as questões que a sociedade angolana tem e terá pela frente.

Como acima disse, retive duas passagens do discurso de João Lourenço que justificam as minhas reflexões sobre o processo de intolerância e exclusão que resultou em gigantescas tragédias na Angola independente.

A segunda passagem desse discurso é a seguinte: “A história não se apaga, a verdade dos factos deve ser assumida para que as sociedades tomem as necessárias medidas preventivas, para evitar que tragédias idênticas se repitam”.

 Como o texto de hoje já vai longo, guardo para a próxima crónica a minha análise baseada naquela frase. E contarei “a verdade dos factos” que vivi como membro do MPLA na luta armada de libertação nacional e como, com outros meus camaradas agrupados na tendência chamada Revolta Activa, contestámos, durante a luta de libertação, os métodos autocráticos de Agostinho Neto. Viríamos a sofrer a repressão cinco meses depois da proclamação da Independência, repressão decretada pelo Bureau Político do MPLA onde, entre outros, pontificavam Neto e Nito Alves que, por sua vez, viria a ser vítima da onda repressiva sanguinária decretada pelo presidente do MPLA e do país, no dia 27 de Maio de 1977. Descreverei as circunstâncias em que se deu a meteórica ascensão de Nito Alves no seio do MPLA a partir do congresso de Lusaka e como se chegou a atitudes tão extremadas que tiveram tão trágicas consequências.

Lisboa, 30-05-2021

*Foto de Adolfo Maria/Ana Brígida

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