Tribunal da Relação do Uíge frustra alegado esquema de extorsão de mais de 600 milhões kz arquitectado pelo empresário Zhan Yongqiao
A Câmara Criminal do Tribunal da Relação do Uíge frustrou uma alegada tentativa de ‘extorsão’ de mais de 600 milhões de kwanzas em indemnização ao empresário chinês, naturalizado português, Zhan Yongqiao — autor de um processo-crime em que se dizia burlado pelo também empresário chinês Yongfeng Gao ‘Cowboy’ (ver aqui matéria original).
De acordo com o acórdão sentença exarado pelos juízes desembargadores da Secção Única da Câmara Criminal do Tribunal da Relação do Uíge, não só ficou provado que não houve o crime de burla por parte de Yongfeng Gao, como também ficou demonstrado que os valores que o empresário Zhan Yongqiao dizia ter investido na parceria comercial não passou dos 10% do investimento acordado.
“Ainda da leitura feita aos autos, olhando para a prova carreada até à fase de produção de prova em audiência de julgamento, não é sustentável o montante de 614.000.000,00kz (seiscentos e catorze milhões de kwanzas) que o Tribunal a quo [tribunal cuja decisão está a ser contestada] admitiu e deu como provado como prejuízo causado ao património do aqui lesado”, concluíram os juízes desembargadores.
A posição do colégio de magistrados daquela instância de recurso fundou-se no facto de “facilmente se perceber que o somatório dos valores constantes nos documentos de fls [folhas]. 30, 31, 32, 33, 69 a 74, e até a informação detalhada constante da Carta de Resposta à Interpelação de fls. 80 a 87, subscrita pela assistente, sequer chegam a rondar esse valor, longe disso!”.
Ao longo da fase de produção das provas em audiências de julgamento, o empresário Zhan Yongqiao foi incapaz de provar que investiu na parceria que tinha com Yongfeng Gao o montante que passou a reivindicar no processo. Aliás, em cada uma das audiências, o queixoso alterou várias vezes o valor: ora dizia que investiu 400 milhões, ora mais 500 milhões de kwanzas, tendo o último valor chegado a mais de 700 milhões de kwanzas.
“A menção feita segundo a qual ‘tudo está nos documentos juntos nos autos em fls. [folhas] 445’, constitui um erro de apreciação, na medida em que as folhas 445 e s.s [seguintes], a que se refere a douta sentença recorrida aqui posta em crise, são de documentos que nunca o Tribunal deveria ter admitido para sustentar a sua decisão”
No entanto, após a conclusão da fase de produção de provas em audiências de julgamento, a assistência do empresário Zhan Yongqiao solicitou ao então juiz da causa João Bengui a junção de várias facturas para justificar um alegado valor de investimento na ordem dos 614 milhões de kwanzas. E, para surpresa de todos, apesar da ilegalidade do acto, o requerimento foi aceite pelo referido juiz.
“A menção feita segundo a qual ‘tudo está nos documentos juntos nos autos em fls. [folhas] 445’, constitui um erro de apreciação, na medida em que as folhas 445 e s.s [seguintes], a que se refere a douta sentença recorrida aqui posta em crise, são de documentos que nunca o Tribunal deveria ter admitido para sustentar a sua decisão, por ser uma prova que não foi examinada durante o julgamento e por ser uma prova, parte dela (senão a maioria) confusa, por se encontrar expressa em linguagem chinesa (mandarim), sem qualquer tradução para a língua veicular usada em Angola, como manda a lei”, lê-se no acórdão.

Ainda segundo a sentença do Tribunal da Relação do Uíge, “uma leitura atenta da sentença posta em crise, permite-nos, de imediato, verificar que os factos considerados assentes pelo Tribunal a quo, relativamente ao valor do prejuízo, encontram-se em oposição à prova produzida em julgamento, sendo certo que a prova produzida em julgamento, constitui toda aquela existente nos autos desde a fase de instrução preparatória até à fase da realização da audiência de julgamento ou aquela que antes do encerramento desta fase é submetida ao Tribunal, mas nunca após a esse encerramento”.
“Nestes termos e demais da lei”, concluíram os magistrados, “acordam os juízes desembargadores da Câmara Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto por inexistência de crime, anulando a decisão e, por força do princípio da intervenção mínima, remeter as partes à Sala do Cível do respectivo Tribunal de Comarca [do Soyo]”.
Origem do caso
Em 2020, através das empresas I.M.I Ilundo (SU), Lda., pertencente a Yongfeng Gao, e Tian Yi He-Pescas, Lda., afecta a Zhan Yongqiao, os dois empresários decidiram firmar uma parceria comercial que visava a construção de um porto comercial de transporte e cargas, duas pontes-cais, uma unidade de processamento de pescado e uma doca, no Canal Yapoto, no município do Soyo, na província do Zaire.

Para a concretização da referida parceria, ambos os empresários acordaram fazer um investimento em valores monetários na ordem dos 10 000 000,00 USD (dez milhões de dólares norte-americanos) e USD 7 000 000,00 (sete milhões de dólares norte-americanos), respectivamente, isto é, o empresário Zhan Yongqiao entraria com 60% do investimento, ao passo que Yongfeng Gao ‘Cowboy’ investiria o equivalente a 40% do montante do projecto (traduzido em terreno e equipamentos).
No entanto, o projecto acabou num impasse quando, a 15 de Janeiro de 2021, o empresário Zhan Yongqiao — que já havia investido um valor na ordem dos 261 milhões de kwanzas, o equivalente a um milhão de dólares norte-americanos, à data dos factos —, tentou, através da Loja dos Registos de Mbanza Kongo, alterar, por meios fraudulentos e sem o consentimento do titular da empresa, o pacto social da I.M.I Ilundo (SU), Lda., afecta ao empresário Cowboy.
Esquema de extorsão
Ao deparar-se com a situação — primeiro com a tentativa de falsificação do pacto social da sua empresa, em Mbanza Kongo — e depois com a certeza da adulteração fraudulenta da mesma em Luanda, junto do Cartório Notarial do Kilamba Kiaxi — Cowboy resolveu pôr fim à parceria e, em resposta, o empresário Zhan Yongqiao decide recorrer à justiça para cobrar um valor muito aquém daquele que havia investido: 614 milhões de kwanzas.
Na altura, a defesa de Cowboy, liderada pelo advogado Belchior Catongo, alimentava as suspeitas e a convicção de se tratava do reeditar do modus operandi usado num primeiro processo-crime, já transitado em julgado, no qual o empresário Zhan Yongqiao acusava de “infidelidade” o antigo parceiro, que acabou condenado a pagar uma indemnização de 141 milhões de kwanzas, com base em facturas ‘duvidosas’, porém, aceite em tribunal como ‘válida’, tal como ocorreu nesse segundo caso, só que com finais diferentes.