Isto É Notícia

Eugénio Laborinho é a nossa ‘Figura do Ano’ (pelas piores razões)

Partilhar conteúdo

É comum, na velha tradição jornalística, todos os finais de ano eleger-se a ‘Figura’ ou a ‘Personalidade’ que mais se tenha destacado pelos seus feitos. Tal como sugere o nome, trata-se de uma distinção dos profissionais de uma determinada redacção, baseada em realizações notáveis.

Pela primeira vez, desde o seu lançamento, a 22 de Junho de 2021, o portal !STO É NOTÍCIA decide chamar até si a responsabilidade de também eleger, entre os vários actores nacionais, uma figura que se tenha destacado pelos seus feitos. Contudo, com uma única diferença: é nosso entendimento que estes feitos tanto podem ser positivos como negativos, e a razão desta acepção deve-se, em parte, à forma como nos posicionamos editorialmente perante os vários fenómenos políticos, sociais, culturais e económicos do país.

Neste primeiro exercício, decidimos eleger, para nossa ‘figura do ano’, o senhor ministro do Interior, Eugénio César Laborinho, obviamente pelas piores razões, sendo que os motivos de escolha se prendem, primeiro, com o facto de estarem associadas a si situações nada abonatórias, sobretudo do ponto de vista da responsabilidade institucional, enquanto responsável de um ministério que responde pela acção da Polícia Nacional;

Segundo, por tudo aquilo que tem sido a actuação tenebrosa das forças de defesa e segurança, mormente a Polícia Nacional, órgão responsável, só este ano, por inúmeras mortes de cidadãos civis indefesos, que, sob o olhar silencioso e cúmplice da Procuradoria-Geral da República (PGR), continuam a engrossar o já longo cortejo de mortes, em consequência das “sistemáticas execuções sumárias” em hasta pública e à luz do dia.

Infelizmente, há já alguns anos que o senhor ministro Eugénio Laborinho se tem revelado como uma entidade pública adepta de acções de extrema brutalidade e de uma violência grosseira só digeríveis em Estados totalitários e/ou repressivos. Aliás, hoje por hoje, já há quem diga que este seja o traço que melhor ajuda a caracterizá-lo, sobretudo quando em causa está a questão da imposição da ‘autoridade do Estado’, que ele confunde com a sua própria enquanto servidor público.

Dito nestes termos, parece estarmos a promover uma espécie de ‘assassínio de carácter’ da figura em causa, mas não! Fazemo-lo nestes moldes porque, enquanto ministro do Interior, o senhor Eugénio Laborinho não se representa a si próprio, mas o Estado, que, em princípio, devia ser pessoa de bem; pelo que todo o juízo de valor que é feito à volta da sua pessoa, deverá ser entendido no plano da análise enquanto titular da referida pasta ministerial.

Um “justiceiro” sem mãos a medir

Quer no trato oral, quando se dirige ao país, como no plano administrativo, quando de si saem orientações aos seus pares oficiais superiores, e etc., o senhor Eugénio Laborinho revela-se como um ‘justiceiro sem mãos a medir e impiedoso’, como se toda a sociedade tivesse infestada de criminosos, levando à conclusão —por maioria de razão — de que o seu posicionamento, ríspido e colado à violência gratuita, esteja na origem dos inúmeros descasos resultantes da actuação dos efectivos da Polícia Nacional (PN).

Antes mesmo de ocupar a principal pasta ministerial, o nome do senhor ministro do Interior esteve associado a um dos dois eventos de extrema gravidade e brutalidade, que, não só representam uma das maiores atrocidades já cometidas em Angola contra os direitos humanos, e sobretudo contra o sacrossanto direito à vida — perdendo apenas para os assassinatos em massa do 27 de Maio de 1977, da Sexta-Feira Sangrenta e de cidadãos oriundos do sul de Angola em 1992 —, como são reveladoras de um grau de insensibilidade atroz, que tem na barbárie e na carnificina a sua maior montra expositora.

Referimo-nos, por um lado, ao ‘Massacre do Monte Sumi’, que o governo angolano, com a diligente colaboração da PN, silenciou e branqueou — demarcando-se de qualquer responsabilidade civil e criminal —, antes pelo contrário, promoveu, com o apoio do Ministério Público angolano, um julgamento para mascarar a ‘presunção da culpa’; e, por outro lado, ao ‘Massacre do Cafunfo’, na província da Lunda-Norte, visto por todos nós por conta dos vídeos que vazaram na internet.

Muito embora não tivesse sido o senhor ministro do Interior a premir o gatilho em nenhum desses graves eventos, não é menos verdade que foi depois o senhor ministro Eugénio Laborinho quem veio dar a cara pelo governo, em ocasiões distintas, e a quem coube a infeliz responsabilidade de ‘mandar recados’ claros a quem quisesse ouvir de que a Polícia Nacional não está para “distribuir rebuçados e chocolates”, numa fase pandémica tão delicada e sensível, quando milhares de famílias, que não sabiam onde tirar o que comer, arriscavam as suas vidas nas diferentes artérias da cidade de Luanda e arredores, vendendo bugigangas e bens alimentares para calarem a fome dos seus filhos.

Diga-se que nenhuma daquelas pessoas, que foi morta por efectivos da PN, na fase pandémica — a esmagadora maioria por mau uso da máscara de protecção individual — foi capaz de quebrar o rigoroso e apertado protocolo da Covid-19 no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, tal como fez a filha do senhor ministro, vindo de um país altamente assolado pela pandemia naquela altura.

É escusado dizer que apesar de a filha do senhor ministro ter quebrado o rigoroso protocolo da Covid-19 não acabou morta como muitos cidadãos acabaram e acabam! E as razões de isso não ter acontecido saberá dizê-lo o próprio senhor ministro, uma vez que foi ele quem a recebeu no aeroporto, tendo-se deixado inclusive fotografar e filmar.

O silêncio cúmplice da PGR

E mais: à morte dos vários cidadãos na fase pandémica, com destaque para o médico Sílvio Dala e Juliana Cafrique, juntou-se pouco depois, em Novembro de 2021, a de Inocêncio de Matos, jovem activista morto numa manifestação por um efectivo da PN, até hoje sem rosto. A este caso de Inocêncio de Matos juntou-se pelo menos perto de uma dezena e meia, sem que nenhum dos protagonistas tivesse sido criminalmente responsabilizado, e nem mesmo o Ministério Público e o do Interior tiveram a coragem de publicamente apresentarem os ‘algozes’.

O caso mais recente foi o da cidadã Raquel Kalupe, no bairro do Cassequel/Teixeira, em Luanda, onde, à semelhança de outras dezenas de casos, os efectivos da PN abordaram cidadãs com disparos à queima-roupa. Como, aliás, vimos no dia a seguir às eleições de 24 de Agosto, no Zango 0 (nas proximidades da Centralidade Vida Pacífica), onde efectivos da PN arrastavam dois cadáveres de cidadãos angolanos que acabavam de ser assassinados, na sequência de uma disputa de terra. O caso acabou impune, e a PGR nunca abriu nenhum inquérito sobre o assunto, ao que se sabe!

Algozes e vítimas sob o mesmo tecto

Ora, para compreendermos este cortejo infindável de mortes de cidadãos civis indefesos, em que são protagonistas efectivos da Polícia Nacional, é preciso, primeiro: reportamo-nos à própria postura e linguagem do senhor ministro Eugénio Laborinho, que nos parece ter os efectivos das forças de defesa e segurança sob seu mando como ‘jagunços impiedosos’, capazes de executar todo e qualquer tipo de orientações, estando estas respaldadas na lei ou não. O que já é mal de todo, até porque existe uma responsabilidade institucional que não é assumida por ele, quando as consequências se reflectem no número de mortes de pacatos cidadãos!

Segundo: as condições miseráveis e degradantes em que se encontra(va) — existe um plano que visa reabilitar e/ou construir de raiz novas esquadras — a maior parte dos comandos e esquadras de polícia são altamente reveladoras do estado de espírito, psicológico e emocional dos efectivos da Polícia Nacional.

Ninguém em sã consciência conseguiria trabalhar com tão pouco ou quase nada numa sociedade como a angolana, onde se exige de tudo a um efectivo da polícia, como se de um ‘autómato’ se tratasse. O Ministério do Interior exige de um efectivo aquilo que o efectivo deveria exigir dele, enquanto órgão ministerial, responsável pela ordem e segurança públicas.

Encaixados e encaixotados

Com o nível de pobreza a que está votada a esmagadora maioria da população angolana, da qual é parte o efectivo da Polícia Nacional; com a péssima qualidade do ensino escolar pelo qual passa o efectivo da PN; com a falta de educação da maior parte dos cidadãos dos quais constam o efectivo da PN; com o crescente número de famílias desestruturadas, fruto da pobreza, da fome, da miséria, das quais são também parte integrantes efectivos da PN; com o crescente número de lares mono-parentais, alimentados regra geral por mães solteiras zungueiras e/ou no sub-emprego — as vítimas preferenciais dos efectivos da PN; com o crescimento do consumo excessivo de álcool entre os jovens; com o desemprego jovem em alta; com o índice de criminalidade em alta, associado à falta de esperança e à frustração, bem como a pressão social; com o insucesso escolar em alta, e etc., tudo isso são factores que proporcionam os tristes acontecimentos a que vimos assistindo e para os quais é a Polícia Nacional chamada a resolver, como se ela fosse a principal responsável por todos esses males que enfermam o país.

Ora, quem actua nestas situações deve ter no mínimo estabilidade psico-emocional para lidar com tantos problemas com os quais o governo tem imensas dificuldades em resolver, mas que, no entanto, espera que seja a polícia, o efectivo da Polícia Nacional mais concretamente, a fazê-lo por via da repressão, do uso da força excessiva, por meio de uma reacção armada contundente, que não pára de enlutar centenas de famílias, a pretexto de que se pretende impor a ordem e a tranquilidade públicas.

Crimes sem rosto

O agravante em tudo isso é que os responsáveis, ou pelo menos os autores destes assassinatos, nunca são apresentados ao público, primeiro, porque os próprios órgãos de defesa não aceitam que se conheçam esses efectivos; segundo, porque não tem sido do interesse da PGR o esclarecimento destes casos.

Na verdade, os efectivos da PN lidam com as consequências de problemas que o governo tem sido incapaz de solucionar. Ora, se assim é, a única responsabilidade política destes ‘desmandos’ protagonizados por efectivos da PN deve ser imputada a quem responde politicamente pela cadeia de comandos destas forças, e esta figura é naturalmente o senhor ministro Eugénio Laborinho; que, aliás, se tem mostrado bastante diligente, sempre que são anunciadas manifestações de natureza político-partidária, e muito menos diligente quando, em consequência da acção de brutalidade policial, surgem as mortes de cidadãos civis indefesos.

É nosso entendimento que, até certo ponto, o próprio efectivo da PN é também uma vítima de todo esse contexto de miséria, porque dentro de uma farda policial não está apenas o polícia — o agente de primeira, o de segunda, o primeiro-chefe, o segundo-chefe, o sub-inspector, ou inspector, o intendente ou subintendente, e etc.; dentro de uma farda policial está um ser humano que tem o dever de manter a segurança e a ordem públicas, sim. Mas que também é ser humano e precisa, como qualquer um de nós, o mínimo de condições para saber lidar com toda essa pressão social, na qual está ele também inserido no exercício das suas funções.

O outro lado da moeda

São estas pessoas que trabalham sem as mínimas condições que têm de lidar com uma sociedade que padece de todos os males possíveis e imaginários; são estes mesmos que, nas esquadras, dormem em locais que mais se assemelham a pocilgas, muitas vezes sem colchões, e são estes efectivos também que, quando destacados em operações, nem à água, nem a refeições (lanches) têm direito. De algum lado a água e as refeições saem, e não é das esquadras, com certeza!

São estes mesmos efectivos que, diante de uma reacção intempestiva do cidadão, reagem disparando à queima-roupa, porque, no fundo, quem está dentro daquela farda é também um cidadão, com as suas frustações, que vive uma vida de miséria e os mesmos problemas que cada um de nós conhece desta Angola.

A culpa destas dezenas de mortes de cidadãos civis indefesos não pode continuar a morrer solteira. A Polícia Nacional não pode continuar a emitir comunicados cheios de inverdades e mentirosos, para justificar o injustificável. Estes comunicados que nos vão chegando soam a um tremendo insulto à nossa inteligência, porque os vídeos, os relatos de testemunhas oculares, entre outros, têm revelado a verdadeira face dos crimes, mas a PN, com seus comunicados eivados de mentiras, conta uma versão torpe e o senhor ministro aceita, porque a polícia não está para oferecer rebuçados e chocolates.

A mentira da verdade

A maior parte dos casos que foram a inquérito acabaram silenciados ou trazidos a público com mentiras mal elaboradas, premiadas com o silêncio do Ministério Público, que prefere acreditar que a culpa é sempre do cidadão civil indefeso, quando um efectivo da PN dispara à queima-roupa.

A 1 de Janeiro de 2022, por exemplo, efectivos da PN andaram aos tiroteios no próprio Ministério do Interior. Houve homicídios seguido de suicídio, no entanto, ninguém soube do resultado do inquérito. Publicamente, o próprio ministro, que é dono da ‘casa ministerial’ onde começaram as escaramuças, remeteu-se a um silêncio tumular. Vários efectivos da PN acabam por colocar termo às suas vidas e as explicações mais se parecem com ‘histórias da Carochinha’. Será que são sempre as dívidas e o facto dos efectivos serem detentores de mais de uma família? Qual é a condição psicológica de um efectivo da Polícia Nacional? Antes destes irem para a rua, são submetidos a exames psicológicos periódicos?

Ora, se não há uma responsabilidade civil e criminal destes casos, deverá o senhor ministro do Interior ser responsabilizado institucionalmente por estas mortes. Porque, até hoje, ainda ninguém explicou ao país o porque de uma actuação violenta da polícia, quando existem outras formas de lidar com a questão da ‘autoridade do Estado’. E mais: o próprio Ministério do Interior tem de se dar ao respeito, para que a sua autoridade não fique nunca em causa!

Todos são seres humanos

Estas vidas que se perdem, senhor ministro, pertencem a núcleos familiares, que são obrigados a refazer as suas vidas, com uma dor que nem o tempo apaga. Porque morrem os pilares destas famílias, restam filhos menores, e todos nós, sem qualquer cinismo, sabemos o que acontece em Angola quando filhos menores e órfãos ficam à mercê de pessoas alheias aos progenitores. Deverá o senhor Eugénio Laborinho não perder isso de vista.

Por um último, é preciso que também não se esqueça, senhor ministro Eugénio Laborinho, que foi no seu mandato que a classe de jornalistas em Angola se viu obrigada a promover uma marcha de protesto contra os abusos da Polícia Nacional aos profissionais da comunicação social. Após 47 anos, nunca foi tão arriscado para um jornalista exercer a sua profissão como agora, porque passaram a ser alvos fáceis da actuação truculenta dos efectivos da PN.

A explicação de que os jornalistas que foram detidos e agredidos psicológica e fisicamente foi por estarem ‘mal identificados’, mais do que patética, é precisamente reveladora do ‘perfil violento’ das forças de defesa e segurança sob seu comando. Porque, senão, vejamos: qual é a necessidade que têm os efectivos da PN de agredir um cidadão civil indefeso simplesmente por estar a filmar ou a entrevistar alguém num espaço público? Que crime comete um cidadão qualquer, que não seja jornalista, a filmar ou a fotografar num espaço público? Porquê a PN impede que sejam feitas filmagens, se ela actua no estrito cumprimento da lei? Qual é o medo de o cidadão deslocar-se a uma esquadra de polícia e registar o momento de abordagem policial para ter como prova? Qual é a necessidade de continuarem a torturar cidadãos por saírem à rua em protesto contra o governo?

Até hoje, o senhor ministro não apresentou ao país um outro sentido da frase, segundo a qual ‘a polícia não existe para oferecer rebuçados e chocolates’ que não fosse o da repressão e o da acção violenta da PN. Poderá agora dizer-nos o real sentido dela?! Terá o senhor ministro explicado aos efectivos da PN de que se referia ao uso da violência para se impor a autoridade do Estado? E a autoridade do Estado impõe-se à custa da morte de cidadãos?!

Terá o senhor ministro explicado que o sentido da frase combina com o uso de balas reais? Falando em balas reais, porquê a PN aborda as manifestações de cariz político-partidário com balas reais? Porquê a PN reprime manifestações utilizando gás lacrimogéneo com a data fora do prazo? Porquê temos uma polícia que tem orgulho em ser violenta e que tem justificações para tudo — e das mais absurdas — quando a sua acção resulta em mortes de cidadãos civis indefesos?

O ministro também é “filho de boa gente”

Em 2023, gostávamos de ver uma Polícia Nacional que — apesar de ser usada pelo poder político como aparelho repressivo de manifestações anti-governo — actuasse como efectivamente um instrumento ao serviço da segurança do cidadão; que actuasse com maior proximidade às comunidades em zona de maior criminalidade, mas com condições, psicológicas e materiais; que não fosse para rua um único efectivo nas condições em que hoje vai, porque o resultado todos nós já sabemos qual é: um desfile de mortes.

O senhor ministro Eugénio Laborinho não quererá ter a sua imagem permanentemente associada a casos de agressões a jornalistas, a agressões a mulheres zungueiras indefesas, quando até temos um Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher; a casos de mortes de cidadãos civis indefesos… O senhor ministro do Interior, como se dizia no antigamente, também “é filho de boa gente”. Faça jus a isso!

Esta distinção pela negativa, enquanto ‘Figura do Ano’, não visa insultá-lo, nem desqualificá-lo, nem tampouco diminuí-lo no seu prestígio familiar, profissional e governamental. É apenas uma nota pública de repúdio contra todas as mortes desnecessárias e injustificáveis; é apenas uma chamada de atenção, para que o seu ministério e o próprio senhor ministro possam perceber que estão a lidar com seres humanos, com vidas humanas; seres estes que não gozam dos privilégios a que o senhor tem direito, mas que são cidadãos angolanos e membros de famílias que merecem o respeito de um governante. Afinal de contas, ministro Eugénio César Laborinho, o efectivo da Polícia Nacional, o senhor, todos nós, também somos filhos de muito boa gente!

*A Redacção do portal !STO É NOTÍCIA

ISTO É NOTÍCIA

Artigos Relacionados